Sombras Contidas


Inquietação que me escapa entre os dedos,
que insiste em ficar quando a quero fora,
como uma sombra entranhada na pele.
E tento encontrar-lhe a voz,
mas o som das lágrimas corta,
desfaz o fio, embarga a palavra.

É um sofrer mudo,
um querer gritar sem fôlego,
como se todo o peso da existência
se encolhesse no peito,
num espaço exato
onde a dor adormece e desperta.

Tento decifrar-me,
ser poeta da minha própria dor,
mas o coração escorre pelo rosto,
num choro que nada diz,
que tudo cala,
num ciclo interminável
de silêncios molhados.

Inquietação que sim,
que quer e não diz,
que fica por dentro,
como uma fera contida,
um rio represado,
esperando apenas
o momento de se perder
em qualquer mar.

E quando penso em libertá-la,
ela enrola-se mais fundo,
feito um nó de raízes escuras
que abraçam o que sou
e o que evito ser.
É uma fome que não sei saciar,
um apelo que nunca encontra eco,
um desejo que pulsa e fraqueja,
meio desfeito, meio grito.

Há um abismo entre o que sinto
e o que o mundo entende,
uma linguagem sem palavras,
um idioma de sombras e espinhos
que os outros não veem.
E tento conter, engolir o peso,
mas ele cresce, teimoso,
como se meu corpo fosse o solo
onde florescem dores antigas,
as que jamais despontam,
mas sempre ficam.

E sigo, nessa guerra surda,
entre a vontade de explodir
e o medo do vazio que virá,
a quietude insuportável do depois,
onde só resta o eco,
a memória de uma dor
que já não sei se era minha,
ou se me habitava
como uma antiga promessa,
como um fado que aceitei carregar.

Carrego-a comigo,
feito peso nas costas,
que curva a espinha e cala o peito,
um pacto silencioso com o invisível,
com o que nunca foi dito,
com o que guardo no olhar vazio.
É uma pele que não me largo,
um espectro de mim mesmo
que caminha ao meu lado,
em silêncio, mas tão presente,
como se fosse, também, meu.

Há noites em que quase grito,
e paro, porque sei:
ninguém entenderia esse som,
esse vácuo de esperança e exílio,
essa ferida sem nome,
essa constante ausência,
essa saudade de mim mesmo
que nunca se acaba.

E a inquietação, que sim,
fica aqui, calada,
em cada pulsar de sangue,
em cada suspiro suspenso,
na espera de um dia, talvez,
encontrar a paz de um abraço interno,
ou o descanso, enfim,
no eco mais puro do silêncio.

A Busca sem Fim


Procuro-me nas palavras,
nas sombras que a vida lança
sobre o meu caminho.
Cada passo que dou
é tanto avanço como recuo,
um espelho onde vejo
não o que sou,
mas o que ainda falta ser.

Nas esquinas da memória,
sou criança,
sou homem,
sou a ideia inacabada
de quem talvez nunca serei.
No tempo que passa,
encontro-me apenas por instantes,
antes de desaparecer de novo,
como uma estrela cadente
que ilumina, mas nunca fica.

A minha identidade não se prende
ao que vejo,
mas ao que sinto
nas margens do meu ser,
onde o silêncio abraça o desejo
de ser mais do que já fui.
E cada dia é uma nova versão
de mim mesmo,
uma reescrita silenciosa
do poema inacabado que sou.

Por vezes, canso-me de procurar,
de seguir esse fio invisível
que me leva a parte incerta.
Mas quando paro,
sinto o vazio crescer,
a ausência de mim mesmo
a gritar dentro do peito.
E assim, volto ao caminho,
não por necessidade,
mas porque a busca
é a única verdade que conheço.

Entre o ser e o não ser,
entre o que deixei de ser
e o que ainda não alcancei,
existe um espaço que é meu,
um vazio cheio de possibilidades,
onde cada ausência
se transforma num novo início.
Afinal, talvez a busca
não seja para me encontrar,
mas para aprender a perder-me,
vez após vez,
até que o perder seja, enfim,
a minha forma de ser.

O Feminino Dentro de Mim

(Inspirado na poeta Maria Teresa Horta)

Há um corpo que arde em mim,
feito de pele e desejo,
um fogo que cresce nos dedos
quando percorro o silêncio do meu corpo.
Ela, que me habita,
vem como uma tempestade,
suave e selvagem,
como o toque que se prolonga
para lá do limite dos sentidos.

O feminino que me chama
não pede licença,
não se contém,
é a fome que desperta
no sopro morno da madrugada.
Ela faz-se sentir na carne,
na curva do meu próprio corpo,
que se molda à vontade
como quem se rende a si mesmo
sem nunca perder o poder.

Ela toca-me
como se o mundo fosse nada
— e tudo.
Na profundidade do seu olhar,
vejo a mulher que sou,
nua e inteira,
sem o peso do que os outros esperam,
apenas o que quero ser.

Cada suspiro seu
é um eco no meu peito,
onde a força de viver se mistura
com o prazer de sentir.
Há uma suavidade selvagem
no seu toque,
uma força que me dobra,
mas nunca me parte.
Ela vive no meu ventre,
nas coxas que tremem,
nas mãos que pedem,
na alma que exige ser livre.

O feminino dentro de mim
é um grito abafado —
e ainda assim,
é um grito que se faz ouvir.
Ela é tanto o desejo quanto a calma,
o toque ardente
e a brisa que refresca.
Eu sou o seu templo,
o seu altar de silêncio,
onde os segredos são ditos
sem palavras.

E quando me entrego a ela,
sou a mulher que me tornei,
e a que sempre fui —
completamente dona
do meu corpo
e do meu ser.

Mas eu gosto desta terra

Nós somos feios, pequenos, estúpidos,
mas eu gosto desta terra,
onde a vida se esconde sob o vinho selvagem da primavera,
onde a noite guarda a escuridão como um segredo antigo.

Tanto a vida quanto a tristeza se entrelaçam,
como um vento fresco que acaricia a alma,
e, ainda assim, eu gosto desta terra,
onde as estrelas gloriosas brilham ao redor de algum lar.

Mesmo pequenos, sentimos o peso da grandeza
que habita nas sombras e nos silêncios,
porque, apesar de tudo, há algo de belo
nas imperfeições que carregamos,
nesta terra que nos acolhe.

Antes do Sussurro


Às vezes olho e já sei.
Não preciso de falar, nem de me explicar,
só sinto o que passa no ar entre nós.
O silêncio não me pesa, é um abraço.
Talvez tu nem saibas, mas também respondes.

O teu olhar fica ali, suspenso,
e é como se tudo estivesse dito.
Não há dúvida, não há espaço entre a tua respiração
e o meu pensamento que corre.

A minha boca não se abre,
não por medo, mas por saber
que qualquer palavra seria menos do que este instante.
As tuas mãos não se mexem,
mas há um querer nas tuas pupilas,
um acordo invisível que assinamos com o piscar.

Fico aqui, assim, sabendo sem saber,
vendo sem precisar ver mais.

Vestígios Invisíveis


Eu guardo mais do que devo,
os dias acumulam-se em gavetas que não abro,
os rostos passam, ficam nas margens da pele,
as palavras caem de mim sem aviso
e eu seguro algumas, as que doem menos,
enquanto o tempo me escapa,
não consigo entender o porquê de tanto vazio,
mas continuo a encher bolsos com sorrisos
e fotografias de momentos que já não sinto.
Ando pelas ruas sem destino,
não há mapa que me salve de mim mesmo,
tudo desliza, perde forma,
eu já não sei o que conta,
mas agarro o riso, o toque, a respiração.
É o que sobra quando o silêncio vem,
não há muito para dizer sobre o que vai embora,
só que as memórias pesam mais que o corpo
e o resto já não importa.

Entre o Peso e o Vazio


Eu gosto desta terra como quem rasga o chão
sou feio mas isso não me dobra, não me apaga
olho os outros, os pequenos, os sujos, e neles vejo o peso que carrego
não sou bom, não sou nada, mas existo aqui
neste canto onde o céu não nos olha, e o mundo nos ignora
arrasto-me com as horas, com o cansaço, mas não me importo
gosto do que dói, gosto do que queima por dentro
não entendo a beleza, nunca a vi de perto
mas estas ruas tortas têm as minhas pegadas, e isso basta
ninguém nos ensina a viver, mas continuamos
somos lentos, somos duros, mas nunca deixamos de andar
há dias em que grito só para me ouvir a mim mesmo
a terra suja prende os meus pés, mas eu gosto
os olhos ardem de tanta miséria, mas seguimos
não me interessa a glória, não me interessa o amanhã
sou este pedaço gasto de carne que respira, que morde
e mesmo sendo nada, sou tudo o que posso ser
porque gosto, gosto deste lugar que não me quer.

Entre Passos


Caminho sem destino, pés tocando o chão áspero,
O ar dança em volta, leve e indiferente,
Nada pesa nos ombros, apenas o vazio da tarde,
O corpo move-se porque precisa, porque é assim.

Entre as árvores, a luz hesita,
O tempo dissolve-se em minutos estendidos,
E os pensamentos correm livres, sem fronteiras.
Não há pressa nem propósito, só o momento.

O som dos passos quebra o silêncio breve,
E eu escuto o mundo, mas sem querer entendê-lo.
A vida passa, com suas ruas, suas casas,
Mas aqui, na terra molhada, há apenas o agora.

Penso em tudo e em nada ao mesmo tempo,
Sem buscar respostas ou perguntas certas.
A mente dança por paisagens internas,
Como se o destino fosse a própria caminhada.

Por vezes, sinto o vento falar comigo,
Ou talvez seja apenas o meu cansaço,
Mas sigo, com os olhos fixos no horizonte,
Onde o sol cai lentamente sobre si mesmo.

Há algo de puro em não pertencer a lugar algum,
Em ser só um corpo que se move, sem raiz,
E nesse estar sozinho, há uma liberdade
Que as palavras não conseguem segurar.

Círculo Vazio


O ódio é simples, direto.
Não nasce da razão, mas do impulso.
Olhas para o outro e decides: inimigo.
Sem lógica, sem análise. Apenas isso.

Há um prazer em negar a existência alheia.
Um poder bruto em apontar e dizer:
"Tu não mereces estar aqui".

A proximidade do outro incomoda.
Ele respira, ocupa espaço.
E tu, que fazes com o teu?

O ódio não precisa de justificação.
Ele alimenta-se da própria presença.
Expande-se, enquanto te encolhes.

Não te libertas ao odiar.
Aprisionas-te.
E, no fim, não sobra ninguém.
Nem o outro, nem tu.

Entre Garras - (Des)identidade

"Dog Woman, 1994" da pintora Paula Rego.

inspirado na pintura "Dog Woman, 1994" da pintora Paula Rego.


Sou cão, mulher, bicho sem alarde
visto a pele que morde o ar
sou os pelos debaixo da unha,
arranho o chão com os joelhos
e o corpo arrasta, suga, pede,
não digo, não grito, mas dobro
os ossos na terra seca.

Os dentes roçam a fome
que não mastigo,
a barriga cheia de pedras
que rolam.

E o vento passa entre as patas,
deixa-me ali, caída, não dói
se a carne não pensa,
mas os olhos caem,
enchem-se de chão e de nada,
o mundo não chega aos pés.

Ventre vazio


O corpo pesa tanto, 
os dias passam lentos, 
não sinto mais nada 
além desta culpa.

As mãos vazias tremem, 
não sei onde pôr 
essa dor que cresce 
dentro de mim, muda.

Queria poder esquecer, 
mas as memórias voltam, 
presas no meu ventre, 
no chão deste quarto.

A culpa rasga tudo, 
como se soubesse 
o que fiz ou deixei 
sem dizer a ninguém.

E agora, aqui estou, 
perdida entre silêncios, 
esperando que acabe.

A cadeira

A Madrastra, 1970 da pintora Paula Rego


Sento-me na cadeira que não me pertence
Os olhos dela deslizam, lentos, nas minhas costas
o couro quente agarra-se à minha pele nua.

Ela faz das suas mãos uma prisão
e eu cedo, com o corpo a pulsar, ao seu toque frio.
A noite pesa nas janelas, mas não falamos de luar.

Ela aproxima-se sem medo de errar.
As unhas dela marcam, cravam-se no músculo
um ensaio de poder nas pontas dos dedos.

Não preciso de gritar, há silêncio que basta.
O quarto veste sombras e o ar fica preso
ela ocupa todo o espaço, um trono e nada mais.

O som das roupas caindo no chão rouba a atenção,
mas ainda não fomos longe o suficiente.
Os lábios dela encontram a pele, e não há revolta.

O desejo é o que sobra depois da queda,
quando as mãos desatam os nós que ela apertou.
E eu, sem medo, aceito essa derrota.

E dormem tantos beijos nos meus lábios


E dormem tantos beijos
nos meus lábios secos,
à espera do toque,
que nunca chega perto.

Guardo em mim ecos
das noites esquecidas,
onde só o desejo
acende a minha pele.

Teu corpo ausente pesa
no calor do quarto,
e as horas passam,
mas não deixam marcas.

E mesmo sem ti,
meus lábios ainda guardam
o sabor perdido
de tudo o que fomos.

A pedra quer ser flor

(O filme "A Pedra Sonha dar Flor", uma obra do realizador Rodrigo Areis, que teve a estreia no festival Curtas Vila do Conde, baseado na obra do escritor Raul Brandão)

Ela, a pedra, suspira.
Quer brotar da raiz invisível, mas não sabe onde nasce o desejo.
E é nas entranhas frias que se ouve o silêncio que a molda.
Ela quer ser outra, uma pétala vulnerável ao vento.

O tempo dança sobre sua pele, mas a pele não cede.
E o peso do mundo a prende, mas seu sonho flutua.
Ela sente a humidade da terra, embora a seca a envolva.
Ser flor é um capricho, uma rebeldia sem voz.

E ela sonha com cores que nunca tocou, com perfumes que desconhece.
Seus poros rígidos anseiam o toque do sol,
mas os dias passam sobre ela, indiferentes.
Não há raízes a seguir, apenas o desejo de ser algo que respire.

Ela, a pedra, não quer durar, quer desvanecer.
E nas sombras das árvores, ela inveja as folhas,
a queda suave, a entrega ao chão que a acolhe.
Ela quer morrer para renascer, leve, numa dança sem gravidade.

Mas há sempre a espera, o instante, e ela, imutável.
Entre a queda e o voo, uma vontade que não sabe nomear.

Fado Rosmaninho


Meu amor, a saudade,
é o rosmaninho que floresce
nas encostas do meu peito dorido,
nas noites em que a lua, tão bela,
se debruça sobre a minha janela.

A doçura que trazes nos olhos,
como um anjo de asas cansadas,
pousa em mim uma espera antiga,
de um tempo que nunca chegou
mas que sempre me abraça.

E é assim que me encontro,
nas tuas palavras caladas,
nas sombras que o fado carrega,
na curva da voz que se quebra,
entre o querer e o que se perde.

Meu amor, a saudade,
é uma chama que não apaga,
um sussurro ao vento que dança,
e que no silêncio me embala.

Instante Alado


Deixei uma ave me amanhecer,
No silêncio da aurora, ela pousou,
Asas de sonhos a me envolver,
E na quietude do peito, cantou.

Reflexo da vida a florescer,
No voo incerto do tempo, voou,
Anseios e medos a percorrer,
Na dança efêmera, se entrelaçou.

No espelho do dia, vi renascer,
A busca incessante, onde me encontro,
Segredos da alma, a perceber.

Na asa do instante, voando sem rumo,
A vida se expande, eterna a correr,
Nesse poema confesso, em que me consumo.

Queima


teu toque incendia-me 
silenciosamente,
abres meus segredos 
ocultos,
minha pele canta,
desfazes minha ânsia,
tua vontade domina,
meu corpo curva-se,
ao desejo intenso,
tua boca invade,
e derrete tudo.

Pelas ruas


Andas pelos becos, mãos sujas do barro do esquecimento,  
agasalhas o frio dos que já não sentem o calor da vida,  
recolhes os estilhaços, os ossos partidos, as almas rasgadas.  
Cuidas das feridas que o tempo ignorou, do sangue coagulado em memórias distantes,  
seguras os corpos que o mundo deixou cair, levantas o que foi abandonado à sorte.  
Amas o que o mundo esqueceu, o que foi deixado à deriva, à margem do rio da indiferença.  
Caminhas sem exigir, sem esperar, teu peito aberto como abrigo,  
como terra fértil que recebe as sementes rejeitadas.  
Abraças o silêncio dos que perderam a voz, das bocas caladas pela dor,  
ofereces teu coração como alimento, tua ternura como remédio.  
Não pedes retorno, não cobras, apenas dás, és fonte que sacia sem fim.  
És o lar que ninguém reconhece, a mão que afaga sem ser vista.  
No teu andar, desenhas caminhos de luz, em terreno de sombras.  
Rasgas a escuridão, costuras esperança nos retalhos da vida.  
És o tempo que acolhe, a chama que nunca se apaga,  
a chama que aquece quem o frio consumiu.  
E enquanto o mundo gira e desvia o olhar,  
tu, persistente, permaneces, colhes o que a vida deixou para trás.

Noite perdida


Na noite incerta, estendemos corpos no chão, o desejo fervendo, arder visceral,
sem freio. 
Nossos corpos se encontram, sobre a
pele, contornos nus se insinuam em
sombras errantes, estremecendo sob a luz difusa de um desejo imenso.

Sentimos a textura da pele em atrito,
mãos exploradoras, curvas sedentas,
contacto vibrante, suspiros dispersos,
amalgamados em gemidos, a dança
instintiva dos corpos sem barreiras, 
numa maré selvagem de prazer crua e
imediata.

Entrelaçamo-nos em espasmos de
euforia, o calor da urgência palpita em
cada toque, a fricção visceral, língua e
lábios, busca e encontro, cada instante, uma explosão, um clímax compartilhado, onde a necessidade se transforma num festim voraz.

A noite é um palco para nossos corpos
audaciosos, a paixão nos devora,
consumindo-nos em chamas. 
Somos seres perdidos e encontrados na mesma voragem, vulneráveis e intensos, entregues ao êxtase, a noite nos molda num desvario coletivo.

Sentimos o prazer como um rito sagrado, em cada gesto, um grito, 
uma promessa, um lembrete cru do que significa realmente existir, onde o prazer e a dor se fundem, se tornam um só, e nos perdemos, intensamente, no calor do chão.

Auschwitz, cinzas do Homem


Um homem caminha por entre sombras,  
com os pés afundados na lama seca,  
respira o ar denso que uma vez foi leve,  
e não sente o peso dos corpos caídos,  
pois aprendeu a calar a voz da alma.  
O suor na testa, mistura-se com o sangue alheio,  
e o olhar turvo encontra o brilho do sol,  
mas não há calor que derreta o gelo do coração.  
O que resta é o vazio disfarçado de dever,  
a fúria contida em ordens cegas,  
e o sopro gélido da indiferença.  
Uma vez humano, agora vestígio de homem,  
ele cumpre a tarefa sem hesitar,  
pois a sombra do poder sussurra-lhe ao ouvido,  
transforma-lhe o espírito em fera adestrada,  
incapaz de reconhecer o rosto no espelho.  
O sangue que pinga das mãos não é seu,  
mas sente-o correr nas veias,  
o pulso ritmado com o grito dos silenciados,  
que ressoa em paredes onde a morte se esconde.  
As estrelas que brilham no céu distante,  
são apagadas pela fumaça das chaminés,  
e ele, cego por dentro, não as vê.  
O cheiro doce da morte impregna os poros,  
mas o nariz acostumou-se ao aroma pútrido,  
enquanto o coração endurece, torna-se pedra.  
O riso de criança que uma vez conheceu,  
é agora lembrança fragmentada,  
perdida na neblina de uma memória esfacelada.  
O que resta é o eco do silêncio,  
a batida surda de um coração que não sente,  
e o peso leve da consciência morta.  
Ali ao lado, em cinzas, jaz a humanidade,  
e ele, sobrevivente de sua própria destruição,  
caminha em círculos, prisioneiro de si mesmo,  
onde o mal disfarçado de ordem,  
consome o que restou da sua alma.  
O corpo, cansado, um dia desmoronará,  
mas a alma, já perdida, não encontrará descanso.

Entre suspiros


Com meu bebé no colo,  
um suspiro suave dança entre nós,  
enquanto o sol derrama sua luz pela janela,  
espalhando dourado pelos cabelos dele,  
pelo meu peito que acolhe.  
Este é o momento em que o mundo  
se reduz ao pulsar delicado,  
ao calor das suas mãos pequeninas,  
dedos que se abrem e fecham,  
como um segredo contado em gestos.  

Na minha pele, sinto o pulsar da vida,  
pequenas batidas, um ritmo que segue,  
sereno, quase mudo, mas tão forte,  
forte como a raiz de uma árvore  
que cresce sem pressa, mas com certeza.  
Ele é um botão, um início,  
uma promessa feita ao futuro  
que guardo junto ao meu peito,  
com todo o cuidado de quem  
acaricia a pétala mais frágil.  

E há uma música que nasce,  
não no silêncio, mas na respiração,  
no ar que entra e sai,  
como um mar que vai e volta,  
e nos carrega em ondas suaves,  
levando-nos para longe de tudo  
que não seja este momento,  
onde o amor flutua entre nós,  
leve como o sopro de uma brisa  
que beija as folhas ao cair da tarde.  

No balanço do meu corpo,  
ele encontra o seu lar,  
no meu olhar, ele descansa,  
e eu vejo nele, tão pequeno,  
um universo inteiro,  
feito de possibilidades,  
de sonhos ainda não sonhados,  
mas que já se entrelaçam  
no ar que compartilhamos,  
numa dança lenta,  
uma melodia feita de nós.  

Com meu bebé no colo,  
o mundo fica mais simples,  
mais certo, mais belo.  
E no sussurro do seu sono,  
eu ouço a promessa de amanhã,  
uma esperança que cresce,  
na doçura do presente,  
na ternura deste instante,  
onde só existimos nós dois,  
e a vida, que começa agora.

A impotência de ser

Na sombra que desce pela madrugada, ela se cala  
Como um véu de nevoeiro sobre a pele rasgada  
Seu dedo se ergue, não para ordenar, mas para implorar  
Que o som, qualquer som, se retire para sempre  
Do espaço onde antes havia vida, havia riso, havia canto  
Mas agora só resta a marca fria de um grito que nunca saiu  
E nos seus olhos há o peso de mil noites insones  
Onde o silêncio é um monstro que devora a alma por dentro  
Uma luz que cega, mas não ilumina  
Que a arrasta para um abismo de pensamentos escuros  
A dor que se esconde nas dobras do silêncio  
Como um segredo enterrado na profundidade da terra  
Onde as palavras se desfazem em cinzas  
E os gestos são correntes que prendem o corpo  
Numa dança macabra com a memória  
As mãos, tremulas, não encontram descanso  
Apenas o frio de uma solidão sem fim  
Que corta como lâminas invisíveis, dia após dia  
E no peito, o coração bate num ritmo descompassado  
Como se quisesse fugir, escapar de um destino cruel  
Mas está preso, amarrado a uma vida de sombras  
Onde o tempo é um inimigo que nunca cessa  
E a esperança, uma flor que murcha sem ter desabrochado  
O peso do silêncio é insuportável, esmagador  
Como se cada segundo fosse uma eternidade  
De olhos fechados, ela vê a escuridão  
Não a escuridão do sono, mas a escuridão da alma  
Onde os pesadelos não têm início nem fim  
São apenas um ciclo infinito de dor e desespero  
E as palavras que ela gostaria de dizer  
Ficam presas na garganta, sufocadas pela angústia  
Porque ela sabe, no fundo, que ninguém as ouviria  
Mesmo que gritasse até os pulmões se despedaçarem  
E então ela se cala, e o mundo se cala com ela  
Num pacto de silêncio e sofrimento  
Onde a única voz é a da dor  
Que ecoa, não no ar, mas nas profundezas do ser  
Uma dor que não tem nome, que não tem fim  
E assim, ela permanece, imutável, no seu silêncio  
Como uma estátua de mármore, fria e inquebrável  
Enquanto o mundo gira, indiferente  
E o silêncio a consome, devagar, sem pressa  
Até que nada mais reste, além da sombra de um sussurro  
Que se perde no vazio da noite.

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*Imagem da campanha da APAV sobre a violência doméstica

A vertigem do vazio


Ela segura em si mesma, uma âncora, ao vazio,  
o grito nasce do ventre, rasga a garganta,  
seu corpo é um mapa de agonia,  
despido, exposto, frágil,  
a pele carrega manchas como sombras de feridas antigas,  
e a dor sobe pelos ossos, afundando-se na carne,  
cada respiração um peso,  
os dedos cravam-se na carne, como quem busca segurar o tempo,  
o grito é silêncio, é ruído, é tudo o que sobrou,  
um lamento que não cessa,  
os olhos fechados, selando a realidade,  
não há consolo no escuro,  
somente o pulsar das veias,  
o sangue que se agita, quente e solitário,  
cada segundo se alonga,  
uma eternidade contida num instante,  
não há alívio na nudez,  
o corpo, uma prisão sem janelas,  
o grito é um trovão,  
a alma contorcida, sem rosto,  
tudo dentro dela implode,  
as memórias fervem, escorrem pela pele,  
mas ela está sozinha,  
nada resta senão a sombra de si mesma,  
e o grito se quebra em mil pedaços,  
espalhados pelo chão frio,  
um corpo em convulsão de vazio,  
as mãos apertam mais forte,  
os dentes rangem,  
ela sente a terra ceder,  
um abismo que se abre aos seus pés,  
e o grito não a salva,  
só a consome,  
e ela desce,  
sem saber se o fim é abaixo ou dentro de si mesma.

Vermelho Silencioso


Pára, não me vês aqui,  
no chão, coberta de vermelho,  
uma tinta quente,  
que escorre das feridas  
que tu mesmo deixaste.  
Mesmo que te ame,  
o chão é duro,  
e o vermelho é a cor  
da dor que se acumula,  
como folhas secas,  
no inverno do nosso amor.  

Cada passo teu,  
é um peso a mais,  
que afunda a pele  
e o meu coração,  
como se a terra  
fosse uma prisão,  
onde eu, já frágil,  
me deito,  
e espero por um alívio  
que não chega.  

Pára, porque a tua ausência  
é um punhal,  
que se volta contra mim,  
e eu, no chão,  
perdida e em pedaços,  
tento juntar o que resta,  
mas cada pedaço,  
cada gota de vermelho,  
é uma cicatriz  
que não sara.  

Teu olhar não toca  
a dor que me consome,  
e eu me vejo  
como uma mancha  
no meio de sombras,  
um grito abafado  
que se dissolve na dor,  
e a ilusão de um amor  
que poderia salvar,  
se torna um desespero.  

Pára, porque o amor  
não é suficiente  
para cobrir as feridas,  
e eu, aqui no chão,  
ainda espero  
uma visão que me veja,  
um toque que possa  
remendar o que se perdeu,  
entre nós.

Mulher e mar


Eu sinto a areia fria nos pés,  
o mar à minha frente respira,  
chama-me com a voz de quem sabe  
que eu pertenço a estas águas.  

Não espero,  
não preciso do consentimento da praia,  
há em mim uma urgência que arde,  
que não se acalma em terra firme.  

Vou sem medo,  
deixo para trás as correntes que prendem,  
as correntes que dizem o que devo,  
como devo,  
mas eu sei o que quero.  

O mar não exige explicações,  
aceita-me como sou,  
com as minhas falhas,  
com os meus sonhos que voam  
em direções diferentes.  

Eu entro,  
sinto o frio que desperta,  
e cada onda é um abraço que me recebe,  
que me diz que posso ser,  
posso simplesmente ser,  
sem máscaras, sem máscaras.  

As mulheres que vieram antes de mim  
estão aqui,  
sinto-as na espuma que dança,  
na força das marés que me guiam,  
e eu sou uma delas,  
sou todas elas,  
sou mulher e mar,  
livre,  
indomável,  
inteira.

(Inspirado no livro "Mulheres que não esperam na praia e querem ir para o mar" de Marta Pais Oliveira)

Estou aqui


Fala comigo, meu amor,  
quero ouvir as ondas que escondes,  
o murmúrio das tuas noites caladas,  
onde o silêncio e a lua se abraçam.  

Deixa-me tocar as tuas sombras,  
as que dançam nas margens da tua alma,  
diz-me dos teus medos, teus abismos,  
tudo o que guardas como segredo.  

Sou um porto para as tuas marés,  
um rio onde podes desaguar,  
traz o teu fardo, teus sonhos esquecidos,  
compartilha o que te pesa e o que flutua.  

Seja a dor ou o riso, eu ouço,  
tu és o som que eu procuro,  
as palavras que nunca me disseste,  
no teu olhar perdido em estrelas.  

Fala, meu amor, eu te espero,  
sou a melodia que te acolhe.

De coração ao alto


Caminho, sempre,  
Com o peito erguido,  
Como quem carrega sonhos nas pontas dos dedos,  
E os deixa flutuar para além do céu,  
Onde o horizonte se perde em promessas,  
Que só o vento sabe sussurrar.

O sol desenha sombras nos meus passos,  
E cada curva da estrada é um suspiro,  
Uma prece ao desconhecido,  
Que me abraça em seu silêncio,  
Enquanto sigo,  
Sigo como quem dança na chuva,  
Na espera do arco-íris que ainda não vi,  
Mas sinto,  
Sinto nas veias,  
Como uma melodia que ainda não nasceu,  
Mas já me embala o coração,  
Neste caminho,  
Onde cada passo é um verso inacabado.

Aprisionado


Queria apenas poder querer
Que a vida fosse vida
E eu nunca a tivesse provado 
Que a noite iluminasse o día 
E eu não conhecesse o sol 
Que a areia beijasse o mar 
E meus lábios fossem nuvens 
Que a chuva caísse no céu 
E eu me afogasse no deserto 

 
Que os ríos nascessem no mar 
E eu vivesse em Plutão 
Que o vento norte soprasse de sul 
Que a morte revivesse a vida 
E eu estivesse de costas
E eu morasse a leste
Que o gelo derretesse a lava 
E eu fosse um fóssil
Que o amor iluminasse o mundo
E eu não estivesse lá


Que o ser derrotasse o ter
E eu nunca o sentisse
E eu conhecesse apenas o vazio 
Que o desespero vencesse a tristeza
Que as lágrimas fossem de açúcar
E eu desconhecesse o sabor 
Que o abraço nunca abrisse mão 
E meu corpo fosse fumo


Que o brilho do teu olhar fosse eterno
E eu nascesse cego
Que a bondade mandasse no mundo 
E meu coração fosse de chumbo
Que o fim fosse o princípio
E eu vivesse sempre no meio 
Que o nada fosse mais que o tudo 
E a liberdade prendendo-me
me fizesse livre.

Espelho d'água


Quando atento no olhar da loucura,  
no espelho d'água, vejo  
o rosto desfeito pela corrente,  
e sinto um desapego  
que me esvaece em gotas de dúvida.  

O meu refletido é um jogo de sombras,  
uma dança turva na superfície,  
e cada ondulação é uma história  
que se dissolve antes de ser contada,  
uma mentira que se desmancha na bruma.  

E neste estado de dispersão,  
onde o tempo é um vazio de silêncios,  
me pergunto se sou eu ou a névoa,  
se o que vejo é real ou apenas um conto  
de um ser desfeito na correnteza do ser.  

A água é um mistério líquido,  
um labirinto de olhos sem fundo,  
e eu, neste jogo de luz e sombra,  
sou um fragmento que se perde,  
buscando, um reflexo que me complete.

Minha tempestade


Esta minha loucura que vos afugenta,  
é o reflexo de um abismo sem fundo  
onde me perco,  
onde me procuro e me encontro,  
mas logo me dissolvo nas sombras.  

E se me escondo nas palavras,  
é porque o silêncio me fere  
com a lâmina fria da indiferença,  
e a solidão me envolve  
como um manto pesado demais para despir.  

Mas eu, no meio deste caos,  
sou feito de fragmentos,  
de pedaços de luz e escuridão,  
e cada parte grita por redenção,  
mesmo que o vosso olhar se desvie de mim.  

E, entre um passo e outro,  
sou o eco de um sussurro perdido,  
uma chama que arde e não apaga,  
na esperança de que, um dia,  
alguém veja além da minha tempestade.

Escombros


Este terramoto que me desmoronou,  
despiu-me da terra, dos sonhos.  
E o tsunami que me encharcou,  
arrasou meu peito, o chão.  

Eu era um castelo de cartas,  
desfeito em poeira e maré,  
as ondas trouxeram segredos  
que eu não queria saber.  

Em cada tremor, um sussurro,  
um fragmento de mim mesmo,  
e a água, como um beijo,  
engoliu a esperança.  

Nos escombros, procuro luz,  
uma fresta, um fio de dia,  
entre ruínas e silêncios,  
onde o novo pode nascer.

No mesmo olhar


Na perda, encontrei-te risonho,  
no rosto a dança de uma manhã clara,  
e no meu peito, a sombra de uma nuvem,  
tranquila, abraçou-me em seu afago.

O que eras em mim desfez-se na bruma,  
mas vi-te seguir, leve como a brisa,  
enquanto o meu silêncio se fez canto.  
Em cada lágrima, um rio sem pressa.

Na tua ausência, descobri-me sereno,  
pois há uma paz que nasce na saudade,  
onde a dor já não fere, só murmura.  
O céu, antes pesado, abriu-se em luz.

E na tua alegria, eu renasci,  
perdi-me para te ver voar,  
e na solidão, achei um novo sol,  
que não queima, apenas acaricia.

Entre o que fui e o que sou,  
há um fio que une, suave,  
a tristeza e a paz, no mesmo olhar.

Uma parte de mim


Uma parte de mim morreu, e a outra parte está morrendo.

A sombra da manhã que não chega, arrasta a luz
como se o tempo fosse areia, correndo sem olhar.
Em cada passo, um vestígio do que fui
se dissolve na névoa, enquanto a noite se dissolve em mim.

Os sussurros do passado tornam-se gritos de um presente
que não sei mais reconhecer; 
ouço os ecos de um coração que não é mais meu
responder ao vazio que se arrasta, 
tenso e cruel.

A dor, essa velha amiga, não se despede,
não há consolo no fim de um dia que não começou,
e a outra parte de mim, a que resta, continua a cair
como folhas secas em um vento que não pode parar.

A esperança se esconde, 
tímida, atrás dos muros da minha mente
e cada pensamento, cada lembrança,
é uma maré que arrasta um pouco mais de mim.

Os sonhos, aqueles espelhos distantes,
quebram-se em fragmentos que não posso juntar.
A tristeza se torna uma parte de minha pele,
uma segunda natureza, um corpo que nunca posso abandonar.

Sigo, com uma parte de mim já enterrada
e a outra parte, lentamente se afundando,
em um mar de incertezas que beira o infinito,
onde não há respostas, apenas o silêncio.

A morte, que se esconde em cada esquina,
não me oferece paz, apenas o peso da ausência.
E eu, uma sombra do que fui, continuo a vagar,
perdido entre os restos de um ser que foi e do que está morrendo.

Só tu e o mar


Tu és o riso à beira-mar,  
com os pés afundados na areia,  
e o vento no teu cabelo,  
desalinhado,  
como a vida que sonhas.  

E tu caminhas,  
sempre caminhas,  
no horizonte de ti mesmo,  
onde o sol se perde,  
como as palavras que não dizes,  
mas que sentes.  

E há uma liberdade,  
tão tua,  
naquele instante de sorriso,  
onde o mundo se dissolve,  
e tu és só tu,  
e o mar.

Beijo fresco


Quero um beijo fresco,  
neste vazio que me queima,  
onde o ar sufoca,  
e a saudade me consome.  
A noite é densa,  
silêncio que se enrola,  
entre o calor da ausência  
e o frio da tua falta.  
Tudo é sombra  
dentro deste peito,  
e o desejo se contorce,  
como serpente em silêncio,  
à espera de um toque,  
de um suspiro,  
de um momento que traga alívio.  
Mas há só o vazio,  
o vazio que me queima,  
e eu só quero um beijo fresco.

Escuta-me

Tu que me embalas,  
mãe de todos os meus silêncios,  
escuta-me.  
Trago no peito  
o peso dos dias,  
e nas mãos,  
as feridas do tempo.

A ti venho, mãe, 
por vontade,  
e por necessidade.  
E embora as palavras me fujam,  
sabes o que escondo  
nas dobras da alma,  
nas noites sem fim.

Peço-te, mãe, 
com esta voz quebrada,  
que me sustentes,  
que me guies por entre  
as sombras que se alongam,  
nas estradas de ninguém.

Porque em ti confio,  
mãe de todos os meus caminhos,  
não me deixes perder.  
Leva-me nos teus braços,  
onde o medo se dissolve  
e o fado se transforma  
num canto de paz.

Tu, que és a minha terra,  
o meu refúgio,  
acolhe-me, mãe.  
E quando a noite cair,  
cobre-me com o teu manto,  
que eu sou apenas  
teu filho à deriva,  
em busca do teu calor.

Eu te falo, mãe, 
sem mais promessas,  
sem mais palavras,  
apenas o meu coração,  
em silêncio,  
espera por ti, mãe.

Quase felicidade


Ela sentia, mas não sabia como dizer.  
Entre o cabelo, o cobre e o silêncio,  
havia uma história que ninguém leu.  
E os olhos, que ao fecharem-se,  
guardavam as palavras que o mundo não ouviu.  
E o peito, que subia e descia,  
com o ritmo daquilo que jamais seria confessado.  
Mas o seu sorriso, ah,  
ele dançava à beira do abismo.  
Era o reflexo de um mistério,  
um segredo que nem ela sabia que escondia.  
E enquanto o mundo rodava,  
ela permanecia imóvel,  
enraizada numa melancolia tão doce,  
que quase parecia felicidade.  
Mas havia algo nos lábios,  
um toque de tristeza que outros chamariam amor.  
E ela, perdida em si mesma,  
deixava-se embalar pela suave angústia de existir.

Os comboios passam


                           I
À janela de casa vejo  
Os comboios que passam, apressados,  
Trilhos cortam o vazio,  
Rumo ao destino incerto.

O ritmo dos vagões me envolve,  
Barulho seco na tarde cinza,  
Entre pausas e pensamentos dispersos,  
O mundo se desfaz, fragmentado.

Pessoas que não toco, apenas observo,  
Passam como sombras em movimento,  
E eu, quieto e inquieto,  
Aguardo o próximo sopro da vida.

No interior da casa, o silêncio  
Ecoa como um comboio distante,  
E eu, aqui parado, esperando,  
Vejo as histórias deslizarem, fugidias.

                            II
À janela de casa vejo 
os comboios que passam,  
são fantasmas de aço e vento,  
trazem-me memórias que nunca tive,  
partem, e levo comigo o rasto das luzes.  
As vozes dos trilhos ecoam nas paredes,  
como segredos murmurados ao ouvido,  
e há uma vontade absurda de me perder nelas,  
mas fico, fico sempre.  
Olho para o relógio,  
mas o tempo aqui não tem pressa,  
é um fio esticado que nunca arrebenta,  
e eu sou um nó que nele se entrelaça.  
A cidade adormece lá fora,  
e eu estou acordado,  
sou parte de um cenário que se repete,  
onde os comboios deslizam sem parar,  
como pensamentos que não consigo calar.  
E entre o som do metal e o silêncio da noite,  
descubro-me a questionar,  
se sou eu que vejo os comboios,  
ou se são eles que me atravessam,  
se sou janela ou passageiro,  
se estou preso à terra ou ao movimento.  

                             III
À janela de casa vejo 
os comboios que passam,  
e há neles algo de mim,  
algo que também se vai,  
algo que fica sempre,  
algo que não sei nomear.  
Fecho os olhos e ainda os vejo,  
são sombras que desenham o escuro,  
levam consigo o que poderia ter sido,  
e deixam-me só,  
com o que realmente sou.

Desassossego


Desassossego I

Existe um lugar, que me escapa,  
onde os sentidos, se entrelaçam,  
com memórias, que não reconheço,  
mas que me assombram, sem trégua.

Dentro de mim, há mares profundos,  
que nunca naveguei, nem compreendi,  
mas sinto, como marés, incessantes,  
a puxar-me, para o fundo, de mim.

E há uma voz, que murmura,  
segredos que não ouso revelar,  
mas que vibram, na minha carne,  
como um sussurro, antigo e vivo.

Esse lugar, onde não me encontro,  
é onde me perco, sem saída,  
num labirinto de sombras, e ecos,  
que me desassossega, noite e dia.

Desassossego II

Existe um lugar, obscuro, em mim,  
que se esconde, em silêncio, profundo,  
entre o medo, e o abismo, da alma,  
onde o tempo, desaba, sem fim.

Dentro de mim, há sombras, latentes,  
onde se perdem, sonhos, antigos,  
pedaços de um eu, tão distante,  
que me desassossega, e murcha.

Cada pensamento, é um eco, que fere,  
um segredo, sussurrado, ao vazio,  
tentando encontrar, no escuro, o porquê,  
de uma inquietude, sem rosto, ou razão.

E nesse lugar, onde não há luz,  
onde o silêncio, se faz, carne,  
habito a dor, como um fado, íntimo,  
e me descubro, frágil, e errante. 

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Em conjunto, os poemas, "Desassossego I" e "Desassossego II" formam um díptico que ilustra a jornada interior do eu lírico em busca de autoconhecimento.

Amiga

Lembras-te de nós,  
dos sorrisos fáceis e abertos,  
de quando os dias  
não pesavam nas sombras?

Era tudo nosso,  
cada sonho uma promessa,  
sem medo das noites,  
nem do tempo que corre.

Caminhávamos juntos,  
mãos entrelaçadas, vozes leves,  
a vida simples,  
sem pressa de amanhã.

Agora, lembramos em silêncio,  
as memórias acesas,  
o sabor doce  
de sermos ainda nós.

Mãos vazias

Eu sei, és tanto e tudo,  
te entregas na corrente dos dias,  
e eu sou este vazio,  
sem promessas, sem margens.  

Tu me ofereces tua alma pura,  
e eu, perdido, sem rumo,  
nada tenho além de silêncios,  
e este corpo, já tão cansado.  

No teu abraço, sinto o infinito,  
mas, nas minhas mãos vazias,  
não há ouro, nem futuro,  
só esta sombra que teima em ficar.  

Queria ser o que esperas,  
mas sou noite sem estrelas,  
um horizonte que não chega,  
um espelho sem reflexo.

Ilusão

Aquilo que preciso  
tu finges que és,  
mas o que tens  
não me dá paz.

És sombra e nevoeiro,  
nada, nada me entregas,  
e eu, perdido,  
sinto o vazio, cruel.

Procuras nas palavras  
o que não tens,  
e eu, iludido,  
abraço o frio do ar.

Mas quero o que és,  
mesmo que doa,  
mesmo que perca  
o sonho de te achar.

Doa a quem doer

A ganância caminha pelas ruas escuras,  
Esconde-se nas sombras, sem pudor,  
Alimenta-se de promessas vazias,  
Doa a quem doer, não há amor.

Ela vê apenas o brilho do ouro,  
Não sente o peso do silêncio,  
Cega pelos seus próprios desejos,  
Deixa para trás um rastro de dor.

A ambição veste-se de luxo,  
Faz-se de amiga nas noites frias,  
Mas espreita com olhos vorazes,  
Doa a quem doer, não se guia.

E assim vai, sozinha e implacável,  
Destrói o que encontra pelo caminho,  
Ninguém é livre dessa corrente,  
A ganância só olha por si.

Pardos

Nas sombras da noite, ele procura  
os silêncios que sussurram medos.  
As mãos tremem, frias e vazias,  
enquanto o mundo se dissolve em negrume.  

No ventre da escuridão, ele sente  
o coração pulsar, descompassado, aflito.  
Os olhos cegos tocam o vazio,  
mas encontram sempre os mesmos fantasmas.  

Há sombras que dançam sem cor,  
são pardas, indiferentes, cruéis.  
Elas arrastam memórias escondidas  
nas dobras do tempo, sem perdão.  

E na noite, ele se afoga,  
nos temores que são dele e não são.  
Mas, quando o dia surge, morre.  
Fica a alma, em silêncio, só. 

Dá-me paz


Dá-me paz, liberta-me do peso,  
das memórias que não calam,  
do vazio que me enreda,  
do silêncio que sufoca o peito.

Pára de me arrastar ao abismo,  
onde as sombras crescem sem nome,  
onde o medo se faz morada,  
onde me perco e não te acho.

Quero um espaço de calma plena,  
onde o tempo não me aprisiona,  
onde o sonho é só meu,  
onde a dor não faz raiz.

Deixa-me respirar sem correntes,  
sentir o sol sem os teus gritos,  
viver a vida sem tuas garras,  
ser eu, sem mais nada.

Mar que seduz

Mar que me toca a pele,  
me sussurra segredos de sal,  
me chama, com voz azulada,  
ao abraço que nunca me solta.

As tuas ondas, ternura líquida,  
enrolam-se nos meus pés nus,  
levam-me para longe, sem pressa,  
nas marés de um sonho antigo.

Teu perfume é o meu alento,  
a maresia que respiro de olhos fechados,  
e na tua imensidão, me perco,  
num balé de espuma e desejos.

No teu regaço, encontro a paz,  
como quem adormece no peito do mundo,  
e ao som das tuas ondas suaves,  
deixo-me levar, sempre para ti.

Mar de silêncio

A dor foi quem a moldou,  
Sem pressa, como cinzel na pedra.  
Cada sulco guarda uma história,  
Silente, mas sempre em voz alta.

E ela, que antes cantava,  
Agora, murmura segredos aos ventos.  
Os olhos, já não têm brilho,  
Só reflexos do que foi perdido.

Por dentro, o eco de um grito,  
Afogado em mares de silêncios.  
Tudo que um dia a cativou,  
Hoje é sombra, espectro de si.

Mas, na dor, também há luz,  
Ela vê beleza na cicatriz.  
A pele rasgada, traça novos mapas,  
Desenha o futuro em linhas firmes.

Nego

Não te quero, insisto em mentir,  
meu corpo te deseja, sem dó.  
Fujo na corrida, de nevoeiro e sol,  
caminho só, no espaço de nós.  

Não sei te amar, digo em surdina,  
mas tua sombra dança, insiste.  
Procuro silêncios, mas vejo clarões,  
o teu riso se cola, em mim.  

Vou fugir, da tua saudade,  
nos espelhos, refúgios de alma.  
Mas vejo o teu rosto, na noite,  
grito ao vento, que me consome.  

Te esquecer, é fardo e sina,  
memória, espinho na carne.  
Rasgo estrelas, no céu e no peito,  
sou presa, daquilo que neguei.

Beijar o sol

Sabes, meu amor, o silêncio pesa,  
nas madrugadas que nunca findam,  
e eu, no escuro, perco o rumo,  
desejo a luz que não alcanço.

A noite, minha pele despida,  
te procura em sonhos dispersos,  
mas cansa-me o vazio das sombras,  
quero sentir o calor da manhã.

Vem, traz-me o brilho do dia,  
quero beijar o sol contigo,  
enquanto a lua se apaga,  
e a esperança renasce em fogo.

Acorda, meu amor, já é hora,  
de abrir as cortinas do peito,  
deixar que o sol nos aqueça,  
e nos salve da noite infinita.