Sem Remédio - Florbela Espanca

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou…
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!…



(Florbela Espanca)

P.F. Não Leiam!


Gente que envolta nas suas insuficiências
Encontra novos olhares na vida
Porquê eu no seio da minha dor
Não vislumbro nenhum na minha!?
Em meu coração na penumbra
Mora uma dúvida consistente
Não sei o que sou,
O que nunca serei,
Nem o que jamais fui!
Em meu coração feito penumbra
Mora uma dúvida,
Mais e mais consistente.
Neste silêncio ensurdecedor
Que clama por uma voz
Sincera, franca e nua
Num claro dizer de verdade
Nesta alma só e escura
A entrada de um grito de luz
Um rasgo de esperança
Nem que seja de ilusão do possível
Que esta morte matada sem vezes
Por fim se cansará de se repetir
Que neste caos em que me fiz
Meus pés ganhem raízes
E regados pelo molhado desejo
Rebente um broto de pura vontade
Força bruta de amor em mim.
Quero ser quem sou
Sem ser quem tenho sido
O horror que vejo em mim
Me mata todo o dia um pouco mais
Preciso enterrar esse olhar
Renascer todo o dia um pouco mais.
Nesta inutilidade desumana
Levo o mundo todo comigo
Dentro do vazio que minh’alma se fez
Numa desumanidade cruel
Feita forma de vida
Numa luta cobarde com a morte
Mais certa que ela própria
Onde se faz do caminhar
Uma fuga sem fim a si própria
Se fazendo à vida
Brincando com o sol entre nossos dedos.
Quero mais, quero tudo, quero nada!
Quero que o nada diga algo
Que tenha cor, melodia e sabor
Quero nada, quero tudo, quero mais!
Quero mais do nada que nada diz
Que tenha suor, cheiro e forma
Quero fugir do tempo que me persegue
Escapando da sombra do que vem
Quero apenas querer o que não quero
E desejar o que nem sei bem que desejo
Quero apenas poder querer
Sem a certeza da verdade das coisas
Que me trouxeram aqui
A este lugar poeirento sem horizontes
Senão esse mesmo horizonte
Que nunca irei alcançar
Por mais infinitos passos que dê.
Meu pó, o melhor do meu ser
Minha ausência
Semente de algo promissor
Onde a morte é o berço
E após uma longa caminhada
De um vazio estripador d’alma
Acabará no instante da concepção
Esse sim o único digno de significado.
Mamã, papá, vergonha em vocês
Que em momento belo de amor
Em insuspeito desejo
Me condenaram ao inferno
Em vida repetido e repetido
E em cada repetição tortura dobrada
Até ao único prazer que fica
Ser o da dor provocada no desejo vão
De aliviar a que a precede…
Em minha carne em sangue, putrefacta,
Os vermes se deliciem em fervor
Objectivos e sem sentido maior
Do que uma refeição bem conseguida
Meu maior feito será minha entrega
A esses seres purificadores da alma
Aprisionada, há tanto tempo perdida
Esperando num último folgo
Oferecer-se útil seu corpo ao eterno
Num gesto embora insignificante
Com razão de ser no todo que existe
No infinito que ainda desconhecemos
Que meu desespero seja alimento
Da minha vibrante e crescente loucura
Que me deixa inquieto, ansioso
Na segurança do abismo próximo
Na paz do que desconheço
E na raiva do que já sei certo
Lutar por quebrar as barreiras
Que no peito teimo em encontrar
Virar do avesso minhas dores
Rasgando novos caminhos
Novos olhares em mim ausentes
Mas muito esperados sem consciência
Outra que não seja a de ser sonhada
Esperando ficar marcado na pele
Com as estórias de uma vida
Tatuagens que nos orgulham
E se nos não definem
Ao menos deixam-nos
Uma doce ilusão de emoções
Porque sonhar é esculpir o amor
Embora nem sempre amar
Seja viver esse sonho esculpido.
Foda-se, puta (sagrada) que me pariu
Isto tudo sem sentido algum
Embora pensemos, sem dúvida!
Já ninguém fala assim…
Ah, por favor, não leiam mais
Me perdoem meu desvario
De alma penada sem vergonha
Que para passar o tempo
Das noites negras infindas
Se perde em disparates sem fim
Num exercício oco de propósito
Que não seja de castigar
Quem distraído se deixa levar
Por não ter, a fazer, nada melhor.
P.F. não leiam!

(2009)

Paradoxal Entender

nos silêncios das palavras
nos vazios dos espaços
nos negrumes do arco-íris
nas sombras das luzes
nos efémeros dos corpos
nas miragens das dunas
nas borrascas das bonanças
na calmaria das ondas
nos sonhos dos dias
a chuva cai, a vida acontece,
"só minha alma te alcança"

Delirando

imagem do Jornal de Letras (JL)
"O maior poeta não é o que escreve versos mas o que dá aos seus actos o alcance e o valor de um poema." - Álvaro de Campos


FERNANDO PESSOA 'DESAPOSSADO' DE UM SUB-HETERÓNIMO
Artigo de Teresa Rita Lopes . Seis poemas inéditos de José Coelho Pacheco.


Trechos do artigo de Teresa Rita Lopes no Jornal de Letras (JL) nº1058 pág.10-11 de 20.4 a 3.5 de 2011. Jornal de Letras (JL) :

"O seu a seu dono - Pessoa 'desapossado' de Coelho Pacheco"

"Coelho Pacheco é, neste texto, como em 'Para Além d'Outro Oceano', discípulo simultaneamente de Caeiro e de Campos pelo uso do verso livre, incomum na época, e pela destruição da fronteira entre poesia e a prosa. E é nisto que ele e os seus mestres em Modernismo, Caeiro e Campos, são verdadeiramente inovadores."

"'A ideia que tenho de espaço', é um monólogo de quem pensa em voz alta, sem rédea do bom senso e da gramática, lembrando Alberto Caeiro, que rejeita 'o corredor que vai do pensamento para as palavras', mas, ao mesmo tempo, Álvaro de Campos, que caracterizou os seus monólogos como os de 'um parvo que estivesse com febre'."


Delirando (10.3.1914)

Como um cadáver frio no mármore gelado
Da mesa numa escola - a imagem não importa -
Hirta e roxa do frio, vejo a minhalma morta
Liberta do meu corpo exangue e macerado...

Vejo-a silente e negra e envolve-a de mistério
Num arrepio da carne - um arrepio que assombra
Um lívido sudário - lívido de sombra -
Na campa vaga dum longínquo cemitério...

E vejo - sim, diviso - um vulto maquilado
Um vulto de histrião, leproso e gangrenado
Dando, num arquejar de todo o corpo seu,

À lividez sangrenta da minhalma um beijo...
(...)
E eu sofro muito...eu sofro muito quando o vejo
Porque esse corpo - horror! - só pode ser o meu.

José de Jesus Coelho Pacheco, (1894-1951)

Caronte











        te espero Caronte
        na beira-praia
        de braços caídos
        e alma pronta