No Café dos Sotaques


"Ó meu amigo, cá da ilha, já viste o mar hoje?"
pergunta o homem do Funchal, enrolando o "r",
como quem rola um peixe espada na boca.
Do canto, o açoriano ri:
"Mar? Isto é baía, homem! Vê lá se sabes falar direito!"
E cada vogal sua arrasta o vento,
como se trouxesse baleias nos bolsos.

"Calai-bos, que 'inda bos dou um tabef!"
rosna o minhoto, em vozes altas e ãos enfáticos,
"Que eu sou homem do Norte, da raiz, do chão'nhe!"
E bate com o punho na mesa,
"Mas que confusão'nhe aqui há! E que barulhão'nhe!"

"Ólhó linguarejar! Quem vos entende?"
troça um das Beiras, língua sibilante,
cortando o ar como guincho de vento serrano.
"E os cês de vocês, hein? São moles de mais!"
E um "sss" desliza por entre dentes de frio.

"Então e o Alentejo? Já chegaram os calmos?"
pergunta o algarvio, a rir com malícia,
"Ou ficaram na planície, em almofadas de trigo?"
"Eh pá, não gozes!" responde o alentejano,
sua fala molhada, a pingar azeite,
"Que a gente fala devagar, mas pensa mais fundo.
Vai-te lá embora e aluga um almanxar."

E os algarvios, ao fundo, a falar baixo:
"Almancil, Aljezur, Alcoutim – já tens a lista?"
E o mar dentro das palavras deles é quente,
areia que abana, desliza, dança.

"Bah, ó malta, acalmem a guelra!"
diz o minhoto, a rir agora,
"Nem todos temos as vossas manias! Mas ei,
que lindo é este país – tudo em bersões!"
"Bersões não!" grita o homem da Madeira,
"Variedades! Que os nomes importam, caramba!"
E, do outro lado, o açoriano responde:
"Isso mesmo, hom’! Na nossa língua, cada ilha é um tom!"

A risada parte, quebra-se em ecos.
"Portugal é isto," diz o das Beiras,
"Um puzzle de falares, mas encaixamos no fim."
E o Alentejano, calado até agora, responde:
"Encaixamos sim, mas sem pressas. Tudo tem seu tempo."
E o algarvio ri: "Só se fores tu. Eu já cá estou!"

E, no meio do café, levantam os copos,
mistura de vozes, sons e fados que rasgam a tarde.
"Saúde!" dizem todos, e cada sotaque brilha,
como luzes a dançar no rio.
Porque neste pequeno café português,
todas as línguas são uma,
e o riso é sempre maior que a diferença.

"Caminho"

mote: "A simplicidade representa o último degrau da sabedoria" - Arthur Schopenhauer


Na quietude, encontro a verdade,
Em gestos simples, a claridade.
Na humildade, a sabedoria é constante.

Olhando o mundo com olhos serenos,
Nas pequenas coisas, vejo o pleno.
O último degrau da vida, sinto vibrante.

A simplicidade é a estrada da luz,
Nela, descubro o divino que conduz.

Pirimaflor

Pirimá era um pirilampo mágico.
Após muitas aventuras e desventuras, se fez luz-da-noite, dádiva de uma flor, que seu corpo luminoso mas cansado recebeu, em seu cálice de amor doce.
Nasceu um farol na noite escura – Pirimá-Flor.

Cavaleiro Monge

ponto de luz

"Vazio Oculto"


Minto porque respiro,
mas respiro mal,
com um peito vazio,
de um ar falso.

A pele veste máscaras,
despindo-me de mim,
com dedos que tremem
ao tocar verdades.

Digo-me sincero
quando não me ouço.
A voz entala-se,
grita muda na garganta.

Quem sou na sombra
quando a luz me olha?
Quero fugir do espelho
mas ele abraça-me.
Sou o reflexo falso.

Debaixo da pele


Depois de me oferecer inteiro
como um rio que transborda
a sua margem ao toque do teu olhar,
restaram-me os fragmentos –
pequenos cristais que rasgam
o silêncio entre a tua ausência
e a minha sede.

Depois de desfiar as horas
como quem desfaz um rosário de culpas
para justificar o abismo,
aprendi que o amor
não morre;
estilhaça-se.
Parte-se em gritos mudos
e espalha-se nas sombras
que habitam os cantos do meu corpo.

O calor do teu abraço,
que um dia foi porto,
agora é um eco
guardado nas ruínas da minha pele,
onde ainda tremem versos,
delírios e lamentos,
entretecidos com o teu nome
num fio de desejo eterno.

Depois de tudo,
só restam as cambrias –
esse fundo abissal da alma
onde guardo os pedaços de nós,
e o sal, o sal amargo
que escorre das feridas
que me ensinaram a amar-te
mesmo na distância.

Roxo é para vestir

Stop the Purple: 
Roxo é para vestir, não para marcar!

As portas fecham outra vez.
A pele grita sem aviso.
Quem ousa abrir a boca?
Os dias cortam como vidro.

A cadeira cai no chão.
O barulho cala o ar.
Os olhos ardem de vergonha.
A dor instala a rotina.

Mas há mãos que falam.
E vozes rompem o vazio.
A pele não é papel.
Não se rasga nem queima.

Viver não é segredo.
Os muros não sufocam mais.
As marcas não são destino.
O roxo veste liberdade.

Os gritos caem ao pó.
Nenhum silêncio é eterno.
A dor não governa corpos.
Somos mais que medo.

Roxo é pele viva.
Roxo não é prisão.

Espelho e Mar

Olho-me no espelho,
não pela vaidade,
mas pela fome de me saber.
Ali, entre reflexos tortos,
há um mar que me olha de volta,
com olhos de sal e memória.

Já fui espuma, já fui rochedo,
já me afoguei nas correntes que criei.
Agora, sou carne que tenta entender
a vastidão de si mesma,
como se pudesse conter o oceano
num gole de ar.

Dizem que o espelho mente,
mas quem mente sou eu,
quando finjo que não vejo
os sismos dentro de mim.
As falhas, as marés,
os gritos que se quebram
nas praias do peito.

Hoje, despir-me é um ato de coragem.
Não da roupa, mas das máscaras
que escondem o que é bruto, o que dói.
Hoje, deixo que o mar invada o espelho
e me leve,
até que eu seja apenas
verdade.