"Véu Frágil"


A arte é um refúgio denso,
mas não apaga a sujeira.
Os dias arrastam-se em silêncio,
e eu olho as mãos vazias.

Porque existo entre paredes gastas,
porque respiro entre ruas mortas,
porque me escondo atrás de palavras,
não me salvo, apenas finjo.

O som das coisas banais
rasga-me a pele tão fraca.
Tudo é real e tão sujo.
Tudo é real e tão frio.

Escrevo para enganar o corpo,
escrevo para calar a alma,
mas a dor está na víscera
e a beleza não a toca.

A arte não cura ninguém,
é um manto roto, sujo.
Mas cobre-me nesta ilusão,
nesta trégua que nunca dura.

Vejo-me num espelho gasto,
não há nada além do rosto.
Vejo-me no chão esquecido,
não há nada além do chão.

Mas persisto, invento-me ainda.
Pinto o mundo com mentiras.
Porque viver é este jogo,
e a arte é só uma máscara.

No entanto, continuo a escrever.
Porque há o medo do silêncio.
Porque há o medo de morrer.
Porque há o medo de não ser.

És recomeço, és beleza


Ela caminha pelo vento,
com passos de marfim,
e o mundo desmorona-se
em gestos e respirações.

As sombras tentam agarrá-la,
mas escorrem entre dedos,
como água nascida hoje,
como fogo que dorme.

Ela não olha para trás,
porque o tempo insiste,
porque as mãos tremem,
porque as palavras quebram.

Há um eco no peito,
uma canção que murmura,
uma dança que nasce,
onde antes só cinzas.

E quando ela para,
o silêncio não pesa,
é como um pássaro
que aprende o voo.

Ela é corpo, é terra,
é verbo, é ferida,
é tudo o que brota
no meio do nada.

Ela não é memória,
ela nunca foi sombra,
mas é a luz crua,
o primeiro raio.

E mesmo caída,
mesmo em estilhaços,
é recomeço sem fim,
é beleza sem nome.

Entre Sorrisos e Silêncios


O sorriso pesa como uma máscara,
e as crianças riem sem perceber nada.
Elas puxam-me para dentro da festa,
mas eu fico sempre preso por fora.

Os brinquedos espalhados pelo chão brilham,
e os papéis rasgados são apenas ruídos.
O aroma doce das bolachas invade tudo,
mas não chega a preencher este vazio.

Queria chorar, mas calo-me firme,
não há lugar para lágrimas agora.
Os olhos buscam um canto escondido,
mas só encontro luzes a piscarem rápido.

As mãos oferecem prendas com tremores,
e a voz finge alegria enquanto treme.
Sento-me na cadeira mais distante,
tentando desaparecer no meio do riso.

Os pequenos gritam e correm pela casa,
mas o vazio não os alcança nunca.
A árvore cheia de enfeites parece absurda,
um monumento inútil no meio da ausência.

Penso na voz dele, na risada clara,
no jeito como fazia tudo parecer certo.
E agora o espaço onde ele estava
é um abismo que ninguém sabe nomear.

Mas sorrio, porque preciso fazê-lo,
porque eles precisam acreditar no Natal.
Mesmo que o riso doa em segredo,
e cada abraço seja só uma despedida.

Naquela cadeira

Sentado naquela cadeira, ao vento norte,
bebo o sal que me rasga a garganta.
A madeira range, um grito seco.
O vento entra pelos olhos abertos.
Não há sol, mas há memória.

Pergunto-me onde está o meu corpo,
se é este ou outro que sinto.
A pele arde como papel molhado.
Queria fugir, mas estou preso.
Não à cadeira, mas ao vazio.

Bebo o mar para preencher o que falta.
O sabor morde e mastigo o sal.
As ondas riem-se de mim, penso.
A água dança, como se soubesse.
Mas não sei o que quero saber.

Penso no tempo, na areia.
Os grãos que escorrem, imutáveis.
Toco o braço da cadeira,
e pergunto se ainda sou eu.
Será que sempre fui eu?

O vento norte não responde nunca.
Agarra-se ao cabelo e leva-me.
Não consigo levantar-me, nem quero.
É melhor beber o mar devagar.
Talvez, no fundo, ele me conheça.

O sal seca na minha língua.
A cadeira balança, mas não caio.
Se caísse, seria eu ou sombra?
Penso em gritar, mas calo-me.
As palavras morrem antes do som.

Bebo mais uma onda do meu corpo.
Fecho os olhos, mas continuo a ver.
O vento norte ri-se baixinho.
Pergunto-lhe se é ele o fim.
Talvez não haja fim, só espera.



Os Comigos


Eu, que me carrego,
neste peso insuportável.
Os dias enrolam-me
em silêncios frios,
e os minutos mordem
a carne que sou.

Sou tantos dentro
deste corpo pequeno.
Arranho-me por dentro,
falam os meus nomes,
gritam como ondas,
rasgam-me o sono.

Quem sou no espelho
quando não olho?
Quantos me cabem
neste peito magro?
Os dedos tremem,
não tocam nada.

A boca fecha-se,
mas dentro há vozes.
Dizem-me: agarra-te,
és tu, és só tu.
Mas como suportar-me
sem me perder inteiro?

Cada sonho mastiga
a realidade que vivo.
Cada desejo afunda-me
no chão molhado
das minhas próprias
promessas vazias.

Sou todos e nenhum,
sou sombra que arde.
Eu que me aguento,
eu que me carrego.
Sou o que sobra
quando já parti.